quarta-feira, 30 de março de 2011

O Premiado (parte I)



         Estava muito mudado, mas o reconheci. Eu não fazia idéia da quantidade de anos que haviam passado desde a última vez em que vira aquele sujeito. Eu havia perdido minha mãe e meu pai em um acidente de carro dois anos antes; sofrera muito, mas fui forçado a conviver com o peso de suas ausências e me conformei em viver o resto da minha vida. Não quero ressuscitar tão terríveis realidades, portanto, não darei maiores detalhes sobre este caso. O que importa agora é que, ao passar por uma praça perto do lugar onde trabalho (sobre o qual também não falarei), encontrei esse homem.
Ele estava sentado em um dos bancos e olhava para um ponto fixo no céu, seus olhos eram pequenas fendas e a testa estava franzida e suada. O sol o castigava. Estávamos em pleno verão e ele usava um terno. Assim como eu, deveria estar voltando ou indo para seu lugar de trabalho, ou apenas fazendo uma pausa; qualquer outra razão também poderia tê-lo levado até aquele lugar. Sua barba estava grande e me parecia muito magro de onde o via. Acho que as coisas estão um pouco confusas, deixe-me falar sobre este homem.
 O M... (assim vou chamá-lo) estudou comigo durante quase todo o meu período escolar. Tive de me mudar com a minha família no último ano antes da formatura e vivi em outra cidade por muito tempo. D    e fato, por quase quarenta anos. Havia voltado dois anos antes quando o acidente já referido aconteceu e me provocou uma rachadura interna. Lembrava-me de que M... tinha uma namorada na escola, muito bonita, por sinal. Os dois eram o casal mais famoso daquele lugar. O amor dos dois era invejado por muitos e a imagem do casal era quase uma pintura de tão perfeita, um parecia detalhadamente planejado para o outro.
 Após observá-lo por algum tempo decidi ir até o homem e ver o que ele se tornara com o passar do tempo. Atravessei a praça fazendo meu caminho entre crianças que corriam e gritavam, choravam e chamavam por suas mães. Cruzei este longo caminho sempre mirando o ressurgido M... sentado no banco. Falei: “M...?”, ele virou bruscamente o rosto na minha direção como se houvesse levado um susto e os seus olhos ainda eram duas pequenas fendas negras que pareciam verdadeiros portais para algum abismo infinito. “Sim?”, respondeu ele.
Por uma simples razão de priorizar a importância das palavras realmente importantes, não vou reproduzir aqui o razoavelmente longo período que levei para lembrá-lo de quem eu era, no qual tive de trazer à tona milhares de lembranças tão antigas quanto aquele banco em que sentávamos. Passemos direto para o ponto da conversa em que ambos subiam muito bem quem era o outro. “Lembro-me que tu tinhas uma namorada que todos te invejavam”, disse eu entre risos bem singelos, “Sim, eu tinha. Tornou-se minha esposa”, respondeu o indivíduo. Fiquei muito surpreso e exclamei: “Nossa! Que ótimo! Por quanto tempo ficaram casados?” Com uma voz extremamente vagarosa, como que saindo de uma fenda parecida com os seus olhos, respondeu: “Ainda estamos, temos três filhos.” Minha surpresa era indescritível. Arregalei os olhos e mais uma vez exclamei: “Que raro! É realmente um privilégio ter um amor tão duradouro! E ainda mais com frutos tão belos como três crianças!”. Minha empolgação era extremamente nítida, eu via no meu colega exatamente a vida que quisera ter, mas nunca tive.
Mas ele, o M... não regia às minhas felicidades, continuava com a mesma expressão, continuava envolto em sombras particulares, afundado no seu próprio abismo.  Mesmo vendo como o homem se encontrava, não podia me conter e continuei a questioná-lo: “E diz, onde estás vivendo? Quais os nomes dos teus filhos? E trabalho? Estás trabalhando?” M... pareceu-me levemente transtornado com tantas indagações e, como se estivesse juntando todas as suas forças, puxando-as diretamente do fundo do abismo, respondeu: “Moramos logo ao fim desta rua, estou voltando do meu trabalho, tenho um altíssimo cargo na mesma empresa há muitos anos.”
Cabe informar aqui que M... era também um dos melhores alunos e tinha suas ambições muito bem estabelecidas desde pequeno. Também não vou entrar em detalhes sobre quais eram essas ambições e qual era o seu atual emprego, mas posso dizer que ele havia alcançado seus objetivos. Possuía um cargo de grande importância em uma das maiores empresas da sua área de interesse.

quarta-feira, 16 de março de 2011

A Tristeza




Eu voltava para casa quando vi um homem morto. Estava caminhando pela rua - de madrugada - e, à primeira vista, não percebi a carcaça atirada no beco. A rua estava deserta, eu havia ajudado a fechar um dos bares que mais freqüento e meus passos tortuosos revelavam o considerável estado de embriaguez em que me encontrava. A noite estava agradável e eu caminhava feliz até encontrar o ser humano no beco.
Primeiro enxerguei os pés. Duas botinas razoavelmente iluminadas pela luz oscilante de um poste. Confesso que demorei um pouco até perceber o que, de fato, eu havia encontrado. Quando minha capacidade mental permitiu-me ter consciência da situação, entrei no beco. Dois ratos e alguns insetos transitavam pelo seu corpo deitado de bruços e gemiam de prazer arrancando-lhe a carne e sugando-lhe o sangue. Dei algumas voltas ao redor do corpo, vendo o quão abandonado eu estava naquele momento. A noite era silenciosa, a rua era vazia, o homem no chão era um morto e eu era a vida.
Ele vestia calças jeans, uma jaqueta esportiva e tinha o crânio carcomido sem nenhum fio de cabelo. Muitos buracos já existiam por todas as suas roupas, provocados pelos novos companheiros de sua antiga existência. Um cheiro horrível emanava de todos os seus poros, aquele homem não era um morto tão recente.
Meu bairro, especialmente naquele trecho, era muito pouco freqüentado devido a uma onda de crimes horríveis como estupros, assassinatos e outras atrocidades que vinham ocorrendo desde alguns meses. Ultimamente, ouviam-se comentários de que a violência havia diminuído, portanto, estava mais tranqüilo para transitar por ali. Afastei os animais com o pé, chutando-os e os mandando diretamente para seus respectivos esconderijos. Virei o corpo para cima e, instantaneamente, fui atingido pela angústia mais profunda que já sentira. Seu rosto estava amassado, como que por tijoladas, e grandes porções dos ossos de sua face eram perfeitamente visíveis. Senti-me enfraquecido e me obriguei a sentar no chão.
Chorei compulsivamente diante daquela tragédia e pensei no quão insignificante era aquele resto de pessoa atirado à podridão de um beco. Pensei no tempo em que aquele corpo deveria estar ali, na quantidade de pessoas que já deveriam ter passado pelo local, que deveriam ter visto aquele homem, e que não reagiram, não tiveram uma atitude, talvez nem mesmo se abalaram com a visão. Pensei na família daquela pessoa, que deveria estar sofrendo a pior dor possível, sem saber onde ele estava, se estava vivo ou morto. Talvez ele tivesse filhos, que cresceriam sem um pai; talvez ele tivesse sonhos, que não poderia realizar. Chorei sobre o fim de um homem até quase amanhecer.
Deitei-me ao lado do corpo e fingi também estar morto. Pensei em quem sofreria com a minha morte, nas conseqüências que tal acontecimento traria, ponderei sobre a minha importância nessa vida e, cada vez mais, senti crescer um enorme vazio dentro de mim. Quando levantei, passei as mãos no rosto, enxuguei as lágrimas e o observei por mais alguns minutos. Meu corpo parecia pesado, relutava em se mover para sair de lá; eu estava pregado no chão, e meus olhos pregados no homem. Juntei forças e me retirei com a alma pregada no beco.
O dia já clareava quando cheguei à minha casa; eu estava muito cansado, mas não hesitei ao pegar o telefone e ligar para a polícia. Relatei o que havia visto naquela madrugada, disse-lhes o local e descrevi com detalhes o estado do cadáver. Assim que desliguei o telefone, deitei-me em minha cama e dormi.
Dormi durante o dia inteiro, tive sonhos horríveis e acordei com o sentimento de que ainda estava no beco com a decadência aos meus pés. Fui ao banheiro e tomei um copo d’água. Liguei a televisão da sala e sentei-me ao sofá para ver o jornal. Acendi um cigarro e abri uma garrafa de vinho. Após alguns minutos do início do jornal, tive a surpresa de ver a notícia sobre o corpo encontrado por mim.
Era um criminoso, procurado há muito tempo; principal líder dos grupos mais temidos da região, responsável pela maior parte dos crimes que vinham acontecendo, provavelmente fora morto por seus próprios cúmplices. Disseram que o homem que havia feito a ligação informando a localização do corpo seria contatado para dar entrevistas e receber uma espécie de homenagem.
Desliguei a televisão, acendi outro cigarro, tomei um grande gole do vinho e encarei a tela escura.