terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Pequenezas


É quando chega o fim do dia e as tarefas e obrigações já não preocupam mais, os deveres não afligem e os arrependimentos já estão quase esquecidos, que eu começo a me perguntar sobre o quão importante foram as pequenas decisões que tomei durante o dia, sobre qual é a relevância tanto para mim quanto para os outros de todos os minúsculos atos que tive coragem de representar e se algum dia realmente encontrarei um verdadeiro motivo por trás de tudo isso. “Viva cada dia como se fosse o último”, alguns já me responderam. Confesso que me esforço incansavelmente para compreender essa frase e penso profundamente para tentar achar a intenção da pessoa quando diz isso. Eu nem mesmo lembro de todas as coisas que aconteceram hoje, nem mesmo sei o que havia planejado e não cumpri, quase não recordo as  coisas que mais fiz. Meu dia acabou, mas durou muito. Durou uma eternidade até agora, durou o suficiente para deixar desaparecer o que o fez existir. Eu mal sei o que fiz nesse dia que acabou, levaria horas enumerando cada momento e ainda assim não conseguiria. Mas foi nesse dia, quase igual ao de ontem e, com certeza, muito parecido com o de amanhã, que eu fui feliz e triste, que me esbaldei em todas as miudezas da minha imensidão individual de possibilidades. Aprendi sobre mim hoje. Aprendi sobre quem amo e quem odeio e me diverti observando a obrigação da noite de chegar. Passei o dia aprendendo, experimentando e sorrindo, examinei cautelosamente cada paisagem do meu cotidiano e achei de uma beleza incontestável, do teto firme da minha casa, onde apenas uma lâmpada enobrece a visão, às árvores, pessoas, bicicletas e animais que vi na rua. Vivi esse dia como se fosse o meu primeiro, onde eu acordaria com a determinação de achar a razão primordial para tudo isso. Farei isso amanhã também, mesmo sabendo que o dia será praticamente igual.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Adeus, Cecília


“Nesta casa tu não entras mais”, a voz grossa e melancólica do pai vinha de trás da poltrona marrom localizada no centro da sala. As ásperas palavras foram pronunciadas assim que a porta da casa foi aberta provocando um rangido leve e trazendo a brisa fria que embalava a madrugada. Ela deu uma olhada rápida na direção da poltrona e pôde ver o topo da cabeça do pai escapando pelo fim do encosto por onde deitavam alguns fios de cabelo. Sem virar o rosto ou a poltrona, ele continuou: “O que queres aqui agora? Já não é o bastante tudo o que fizeste? Ainda te resta orgulho suficiente para retornar à casa que profanaste? Tu fizeste tua mãe chorar, teus irmãos não sabem mais o que pensar, nem eu mesmo sei! Acabaste a tua obra-prima, Cecília, concluíste a tua maior façanha, conseguiste destruir tudo que, durante anos, eu tentei construir com a tua mãe. Cecília, tu queimaste toda a nossa capacidade de te amar, atiraste ao fogo todo o nosso desejo de uma vida feliz. Jogaste nosso amor ao chão! E cuspiste em cima! Vomitaste na vida da tua família, e na tua também! Percebe, Cecília, que não há mais nenhum resquício, o corpo e a carcaça foram devorados, os ossos foram triturados, não há nem o que enterrar. Esgotaste todas as possibilidades, ultrapassaste o limite de tolerância desta família, dispersaste tudo pelos ares”, sua voz começava a se tornar mais embargada, segurava as lágrimas e sentia nos cabelos a brisa que vinha da porta aberta.
“Diz por quê! Por que razão fizeste tal coisa? Como é possível? Conta, Cecília! Diz por que decidiste arruinar sonhos e desapontar os que te amam? Por que prometeste a ti mesma que deixaria apodrecer a mais linda cesta de frutas? Como pudeste esquecer as comidas mais refinadas ao mofo? Cecília! Por que fechaste as janelas desta casa? Da nossa casa! Com que motivo tu fechaste as portas e deixaste enferrujar todas as fechaduras e dobradiças? Por que não limpaste as janelas, se elas eram tão embaçadas? Por que não varreste o chão, se não querias caminhar na sujeira? Por que não abriste os olhos para ver que nós não merecíamos nada disso! Oh, Cecília, devolve tudo que eu já te dei! Devolve os sorrisos que te dei aos olhos, devolve os carinhos que te dei ao corpo, à alma! Não mereces uma migalha da nossa compaixão, não mereces um farelo azedo do nosso pão. Por que foste tão longe, Cecília? Responde! Por quê?”
Passou as mãos no rosto e, depois de alguns segundos de silêncio, continuou com a voz mais calma: “Não respondas nada, Cecília, não tens também o direito de falar, fizeste bem em ficar quieta até agora. Não chores sobre isso, peço-te. Tuas lágrimas não têm o direito de correr pelo teu rosto, não enquanto pensares na tua antiga vida. Podes chorar pelo que quiseres, mas não pelo que provocaste. Esquece tua mãe; deixa que aprenda a conviver com a tua ausência. Teus irmãos não mais existem para ti, e eu, eu sei que essas serão minhas últimas palavras direcionadas à tua pessoa. Procura saber, Cecília, que no momento em que perdeste o amor a esta família, perdeste o teu significado para todos que aqui vivem. Não tentes reconquistar o que fizeste questão de abandonar, por favor, Cecília. Simplesmente esquece que um dia tiveste uma vida anterior ao que tu fizeste. Esquece que, em alguma época, alguém nessa casa te amou e te quis bem, esquece que já fomos todos uma família, esquece como é sentir-se amada por teus aparentados, esquece, Cecília, esquece.”
O pai acendeu um cigarro enquanto continuava olhando para a parede. Entre tragadas e baforadas, disse: “Agora vai embora, Cecília, espalha teu câncer em outro lugar, dilacera os corações de outros imbecis, faz de idiotas outros que te amaram. Cospe em novas caras, pisa em novas vidas, vai! Mata tuas vontades! Derrama tua saliva fétida na boca de um pobre coitado! Vive a tua vida como tu quiseres, não perderei uma noite de sono pensando em ti, não me arrependerei de uma palavra que disse aqui”, a fumaça subia em longas baforadas até o teto, “Não penses tu, Cecília, que chorarei a tua ausência; deixaste o caos chegar a um ponto no qual me dou o direito de abster-me de qualquer sentimento melindroso em relação a ti. Agora vai, some daqui, vou subir para o quarto onde tua mãe dorme chorosa, vou para o andar de cima da casa em que tu nasceste e morreste para nós.”
 O pai se levantou, apagou o cigarro em um cinzeiro e virou em direção à porta da casa. Ficou por alguns minutos observando a porta aberta, sentindo a brisa - que agora havia se tornado um vento forte - e se ajeitando dentro do pijama. Quando começou a sentir verdadeiro frio, caminhou com passos curtos, arrastando os chinelos até a porta e, depois de olhar para a rua escura e silenciosa, trancou todas as fechaduras enquanto sussurrava: “Adeus, Cecília, adeus”.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O Protagonista

Era sem dúvida um momento muito triste. Era aquele ambiente não-escuro, não-claro, talvez uma penumbra, como chamam. Era uma angústia, um sofrimento. Era eu ali. Meus olhos não tinham a capacidade de distinguir quase nada, a sensação era a mesma de quando as pálpebras não são fortes o suficiente para esconder os olhos e o sono da claridade ao redor. Eu podia perceber algumas formas, lâmpadas, lanternas, holofotes, letreiros de neon, velas, candelabros enormes, todos em minha volta, todos apagados. Eu não me movia, não ousava abrir a boca, apenas observava o pouco que me era oferecido. Eu suava, mas não estava quente, deveria ser alguma espécie de nervosismo. Fiquei assim por horas, não pensava em quase nada, continuava mirando as diversas possibilidades de iluminação, calculando o potencial daqueles inibidores do escuro. Não sei de onde vinha a fraca luz que me permitia contemplar o que de fato poderia iluminar e perceber o quão frustrante é estar no escuro desta maneira. Estava assustado, mas não rezei, talvez porque nunca tenha feito isso antes. Não tenho a quem rezar, mal acredito em mim mesmo, dificilmente teria alguma fé em outra coisa. Tentei me acalmar e fechei os olhos, respirei fundo, passei as mãos pelo cabelo, pelo meu rosto, estendi os braços ao longo do corpo e abri os olhos novamente. Tudo igual. Decidi caminhar, mas tive medo, não sabia o que poderia haver entre todas aquelas formas, não sabia nem se havia espaço para sair dali.
Quando todas as luzes surgiram, eu fiquei cego. Os holofotes, as lâmpadas, os letreiros, as velas, todos fizeram a ausência de cor que me cercava desaparecer e deram lugar à claridade que me cegou. Tapei os olhos com as mãos e esperei até que a dor passasse. Fui aos poucos descendo as mãos e abrindo os olhos, já não estava mais cego. Eu podia enxergar perfeitamente todos aqueles objetos, via perfeitamente seus formatos, suas cores, todas elas;  via a chama das velas tremendo e as lâmpadas esquentando. Olhei além de tudo isso e, depois de mim, depois das luzes, logo adiante, ainda era tudo escuro. E eu estava só.