quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Adeus, Cecília


“Nesta casa tu não entras mais”, a voz grossa e melancólica do pai vinha de trás da poltrona marrom localizada no centro da sala. As ásperas palavras foram pronunciadas assim que a porta da casa foi aberta provocando um rangido leve e trazendo a brisa fria que embalava a madrugada. Ela deu uma olhada rápida na direção da poltrona e pôde ver o topo da cabeça do pai escapando pelo fim do encosto por onde deitavam alguns fios de cabelo. Sem virar o rosto ou a poltrona, ele continuou: “O que queres aqui agora? Já não é o bastante tudo o que fizeste? Ainda te resta orgulho suficiente para retornar à casa que profanaste? Tu fizeste tua mãe chorar, teus irmãos não sabem mais o que pensar, nem eu mesmo sei! Acabaste a tua obra-prima, Cecília, concluíste a tua maior façanha, conseguiste destruir tudo que, durante anos, eu tentei construir com a tua mãe. Cecília, tu queimaste toda a nossa capacidade de te amar, atiraste ao fogo todo o nosso desejo de uma vida feliz. Jogaste nosso amor ao chão! E cuspiste em cima! Vomitaste na vida da tua família, e na tua também! Percebe, Cecília, que não há mais nenhum resquício, o corpo e a carcaça foram devorados, os ossos foram triturados, não há nem o que enterrar. Esgotaste todas as possibilidades, ultrapassaste o limite de tolerância desta família, dispersaste tudo pelos ares”, sua voz começava a se tornar mais embargada, segurava as lágrimas e sentia nos cabelos a brisa que vinha da porta aberta.
“Diz por quê! Por que razão fizeste tal coisa? Como é possível? Conta, Cecília! Diz por que decidiste arruinar sonhos e desapontar os que te amam? Por que prometeste a ti mesma que deixaria apodrecer a mais linda cesta de frutas? Como pudeste esquecer as comidas mais refinadas ao mofo? Cecília! Por que fechaste as janelas desta casa? Da nossa casa! Com que motivo tu fechaste as portas e deixaste enferrujar todas as fechaduras e dobradiças? Por que não limpaste as janelas, se elas eram tão embaçadas? Por que não varreste o chão, se não querias caminhar na sujeira? Por que não abriste os olhos para ver que nós não merecíamos nada disso! Oh, Cecília, devolve tudo que eu já te dei! Devolve os sorrisos que te dei aos olhos, devolve os carinhos que te dei ao corpo, à alma! Não mereces uma migalha da nossa compaixão, não mereces um farelo azedo do nosso pão. Por que foste tão longe, Cecília? Responde! Por quê?”
Passou as mãos no rosto e, depois de alguns segundos de silêncio, continuou com a voz mais calma: “Não respondas nada, Cecília, não tens também o direito de falar, fizeste bem em ficar quieta até agora. Não chores sobre isso, peço-te. Tuas lágrimas não têm o direito de correr pelo teu rosto, não enquanto pensares na tua antiga vida. Podes chorar pelo que quiseres, mas não pelo que provocaste. Esquece tua mãe; deixa que aprenda a conviver com a tua ausência. Teus irmãos não mais existem para ti, e eu, eu sei que essas serão minhas últimas palavras direcionadas à tua pessoa. Procura saber, Cecília, que no momento em que perdeste o amor a esta família, perdeste o teu significado para todos que aqui vivem. Não tentes reconquistar o que fizeste questão de abandonar, por favor, Cecília. Simplesmente esquece que um dia tiveste uma vida anterior ao que tu fizeste. Esquece que, em alguma época, alguém nessa casa te amou e te quis bem, esquece que já fomos todos uma família, esquece como é sentir-se amada por teus aparentados, esquece, Cecília, esquece.”
O pai acendeu um cigarro enquanto continuava olhando para a parede. Entre tragadas e baforadas, disse: “Agora vai embora, Cecília, espalha teu câncer em outro lugar, dilacera os corações de outros imbecis, faz de idiotas outros que te amaram. Cospe em novas caras, pisa em novas vidas, vai! Mata tuas vontades! Derrama tua saliva fétida na boca de um pobre coitado! Vive a tua vida como tu quiseres, não perderei uma noite de sono pensando em ti, não me arrependerei de uma palavra que disse aqui”, a fumaça subia em longas baforadas até o teto, “Não penses tu, Cecília, que chorarei a tua ausência; deixaste o caos chegar a um ponto no qual me dou o direito de abster-me de qualquer sentimento melindroso em relação a ti. Agora vai, some daqui, vou subir para o quarto onde tua mãe dorme chorosa, vou para o andar de cima da casa em que tu nasceste e morreste para nós.”
 O pai se levantou, apagou o cigarro em um cinzeiro e virou em direção à porta da casa. Ficou por alguns minutos observando a porta aberta, sentindo a brisa - que agora havia se tornado um vento forte - e se ajeitando dentro do pijama. Quando começou a sentir verdadeiro frio, caminhou com passos curtos, arrastando os chinelos até a porta e, depois de olhar para a rua escura e silenciosa, trancou todas as fechaduras enquanto sussurrava: “Adeus, Cecília, adeus”.

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