quarta-feira, 16 de março de 2011

A Tristeza




Eu voltava para casa quando vi um homem morto. Estava caminhando pela rua - de madrugada - e, à primeira vista, não percebi a carcaça atirada no beco. A rua estava deserta, eu havia ajudado a fechar um dos bares que mais freqüento e meus passos tortuosos revelavam o considerável estado de embriaguez em que me encontrava. A noite estava agradável e eu caminhava feliz até encontrar o ser humano no beco.
Primeiro enxerguei os pés. Duas botinas razoavelmente iluminadas pela luz oscilante de um poste. Confesso que demorei um pouco até perceber o que, de fato, eu havia encontrado. Quando minha capacidade mental permitiu-me ter consciência da situação, entrei no beco. Dois ratos e alguns insetos transitavam pelo seu corpo deitado de bruços e gemiam de prazer arrancando-lhe a carne e sugando-lhe o sangue. Dei algumas voltas ao redor do corpo, vendo o quão abandonado eu estava naquele momento. A noite era silenciosa, a rua era vazia, o homem no chão era um morto e eu era a vida.
Ele vestia calças jeans, uma jaqueta esportiva e tinha o crânio carcomido sem nenhum fio de cabelo. Muitos buracos já existiam por todas as suas roupas, provocados pelos novos companheiros de sua antiga existência. Um cheiro horrível emanava de todos os seus poros, aquele homem não era um morto tão recente.
Meu bairro, especialmente naquele trecho, era muito pouco freqüentado devido a uma onda de crimes horríveis como estupros, assassinatos e outras atrocidades que vinham ocorrendo desde alguns meses. Ultimamente, ouviam-se comentários de que a violência havia diminuído, portanto, estava mais tranqüilo para transitar por ali. Afastei os animais com o pé, chutando-os e os mandando diretamente para seus respectivos esconderijos. Virei o corpo para cima e, instantaneamente, fui atingido pela angústia mais profunda que já sentira. Seu rosto estava amassado, como que por tijoladas, e grandes porções dos ossos de sua face eram perfeitamente visíveis. Senti-me enfraquecido e me obriguei a sentar no chão.
Chorei compulsivamente diante daquela tragédia e pensei no quão insignificante era aquele resto de pessoa atirado à podridão de um beco. Pensei no tempo em que aquele corpo deveria estar ali, na quantidade de pessoas que já deveriam ter passado pelo local, que deveriam ter visto aquele homem, e que não reagiram, não tiveram uma atitude, talvez nem mesmo se abalaram com a visão. Pensei na família daquela pessoa, que deveria estar sofrendo a pior dor possível, sem saber onde ele estava, se estava vivo ou morto. Talvez ele tivesse filhos, que cresceriam sem um pai; talvez ele tivesse sonhos, que não poderia realizar. Chorei sobre o fim de um homem até quase amanhecer.
Deitei-me ao lado do corpo e fingi também estar morto. Pensei em quem sofreria com a minha morte, nas conseqüências que tal acontecimento traria, ponderei sobre a minha importância nessa vida e, cada vez mais, senti crescer um enorme vazio dentro de mim. Quando levantei, passei as mãos no rosto, enxuguei as lágrimas e o observei por mais alguns minutos. Meu corpo parecia pesado, relutava em se mover para sair de lá; eu estava pregado no chão, e meus olhos pregados no homem. Juntei forças e me retirei com a alma pregada no beco.
O dia já clareava quando cheguei à minha casa; eu estava muito cansado, mas não hesitei ao pegar o telefone e ligar para a polícia. Relatei o que havia visto naquela madrugada, disse-lhes o local e descrevi com detalhes o estado do cadáver. Assim que desliguei o telefone, deitei-me em minha cama e dormi.
Dormi durante o dia inteiro, tive sonhos horríveis e acordei com o sentimento de que ainda estava no beco com a decadência aos meus pés. Fui ao banheiro e tomei um copo d’água. Liguei a televisão da sala e sentei-me ao sofá para ver o jornal. Acendi um cigarro e abri uma garrafa de vinho. Após alguns minutos do início do jornal, tive a surpresa de ver a notícia sobre o corpo encontrado por mim.
Era um criminoso, procurado há muito tempo; principal líder dos grupos mais temidos da região, responsável pela maior parte dos crimes que vinham acontecendo, provavelmente fora morto por seus próprios cúmplices. Disseram que o homem que havia feito a ligação informando a localização do corpo seria contatado para dar entrevistas e receber uma espécie de homenagem.
Desliguei a televisão, acendi outro cigarro, tomei um grande gole do vinho e encarei a tela escura.

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