terça-feira, 5 de abril de 2011

O Premiado (parte II)


Eu não tinha mais como esconder minha admiração por aquele homem. Estava prestes a exaltar-me mais uma vez com elogios e exclamações quando o rosto de M... me deu uma espécie de choque de realidade. Percebi que estávamos em posições realmente muito estranhas e que alguma coisa não estava certa naquela situação. Eu, com uma vida monótona, sozinho, sendo o oposto do que planejava ser, tinha a capacidade de ser feliz e ainda contentar-me em saber sobre a vida do outro. Mas M... mesmo com uma vida estável, uma esposa que o amava, três filhos, uma boa casa e um ótimo emprego, parecia imerso na mais profunda melancolia. Mudei rapidamente de expressão e sem me controlar, perguntei: “Há algo errado? Tens algum problema?”, virando a cabeça de volta para o céu e respirando fundo, M... respondeu: “Não tenho nenhum problema. Nem mesmo um daqueles pequenos! Não há nada errado, é tudo tão perfeito!” Fiquei completamente mudo. Pela primeira vez, o homem parecia ter colocado pelo menos a cabeça para fora do abismo para que pudesse expor algum sentimento. Ele estava reclamando. Suas palavras, por mais que descrevessem coisas boas, ótimas, lindas! Eram reclamações. Senti-me razoavelmente ofendido ao ver tamanha insatisfação e comparar sua vida com a minha. Sem me controlar, falei: “Por favor, homem! Valoriza a vida que tu tens! Há apenas dois anos perdi meus pais em um acidente, tenho um emprego detestável e ainda assim consigo me divertir com meus amigos, viver a minha vida de forma feliz!” ele logo respondeu: “O problema é justamente esse. Não vês? Meus pais estão vivos como essas crianças que aqui brincam e correm, meus amigos estão sempre por perto me chamando para festas, minha mulher me ama e nunca tem sequer uma reclamação para fazer sobre mim, meus filhos são lindos e educados, sou tão competente no meu trabalho que fui indicado a uma premiação que ocorrerá mês que vem, todos me tratam extremamente bem e vivo exatamente no lugar em que gostaria de viver. É tudo tão perfeito, tudo tão lindo, não há nenhum conflito, nenhuma exceção, nenhum porém”.
Confesso que eu estava muito confuso com tudo aquilo e, sem saber o que dizer, perguntei: “Mas esse prêmio que podes ganhar não te deixa ansioso, orgulhoso, feliz em saber que poderás recebê-lo?” “Claro que sim”, respondeu ele, “eu sinto tudo isso, mas deves perceber que estas são apenas mais algumas felicidades entre outras tantas. Estou farto delas. Um homem, meu amigo, é formado por todos os sentimentos. Cada um deles. Todos devemos amar e odiar, sorrir e chorar, orgulhar e desapontar... somos compostos da inconstância sentimental. Somos o belíssimo fruto das mais lindas e horríveis coisas internas e externas da existência. Deve ser assim para todos, mas não é para mim; falta-me certa parte do essencial”
 Eu realmente não sabia mais o que falar. Fiquei algum tempo observando o abismo à minha frente e percebi que aquilo estava me fazendo mal. Quando M... virou novamente o rosto para o céu, levantei-me e despedi-me com milhões de pensamentos me assombrando. M... disse um simples “Adeus” e eu fui embora. Quando já havia me afastado da praça, olhei para trás a fim de ver uma última vez aquela figura recortada da realidade, aquela pessoa avulsa entre as crianças e a alegria daquela praça.

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