sábado, 16 de abril de 2011

Saborear


Comida de hospital é horrível, todos sabem disso. Há sete meses eu comia as mesmas porcarias que, devido à minha obrigação de ingeri-las, já haviam adquirido um sabor inigualável. Eu não tinha obrigação nenhuma; era refém de uma cama de hospital. Não podia fumar, transar, beber; não tinha uma namorada ou esposa que me acarinhasse, não tinha filhos ou irmãos; a maior parte de minha família havia se desintegrado aos poucos e cada pequena fração seguira seu próprio caminho. Eu não segui caminho algum.
 Minha mãe estava morta há muitos anos e meu pai havia nos abandonado quando eu tinha doze anos; nunca sofri por isso, confesso. Então ali estava eu: deitado, morrendo sozinho, desfrutando da culinária singular que me era oferecida. Passava os dias observando o meu quarto: os aparelhos ao meu lado, o armário bege em um canto, a janela retangular com cortinas brancas, a porta do banheiro e a porta do quarto. Logo à minha frente havia uma televisão, sempre desligada. Os enfermeiros, quando vinham ao meu quarto a fim de botar em prática o que lhes havia sido ensinado, sempre me perguntavam se não queria que ligassem a televisão. Respondia a eles que não, estava bem assim. Eu achava que não poderia perder esta oportunidade de descansar em silêncio.
Pensava em muitas coisas, lembrava-me de situações engraçadas e ria até lacrimejar, pensava nos meus fracassos e chorava copiosamente, nunca por muito tempo. Logo me lembrava de um dos meus muitos amores e delirava em memórias muito bem guardadas de felicidades que me escaparam pelas mãos. Sentia-me extremamente orgulhoso quando recordava cada uma de minhas conquistas e abria um sorriso triunfante que iluminava todo o aposento onde eu provavelmente morreria. Odiava quando era interrompido pela porta que se abria trazendo ao meu quarto um enfermeiro que não tinha nenhuma outra função que não fosse a de manter-me vivo para que pudesse interromper mais vezes as recordações que me faziam tão feliz. Traziam comida, remédios, davam-me notícias sobre o meu estado e tentavam demonstrar alguma compaixão pelo homem que viam. Eu não dava atenção, queria apenas minha fabulosa comida, queria aproveitar o meu único prazer que vinha me agradar três vezes por dia.
Durante toda minha vida havia sido criticado por ser muito pessimista. Nunca entendi muito bem os motivos que levavam as pessoas a dizer isso, mas agora, onde me encontrava, passei a pensar sobre tal assunto. Estava em uma situação de quase morte; a qualquer momento a porta do meu quarto poderia ser aberta para introduzir no silêncio o anúncio de meu fim. Talvez, dentro de alguns minutos, um médico pudesse me arrancar dos meus delírios para trazer-me uma verdade sólida. E eu? Nada me preocupava.
Minha morte não me afligia; meu fim não me abalava. Sou eu um pessimista por não sentir a obrigação de ter esperanças? O fato de que o fim da minha vida não me angustiava me tornava um suicida? Eu estava apenas preso em uma situação na qual nada podia fazer. Devia eu chorar no ombro de ninguém que vinha me abraçar? Devia eu chorar sozinho por ser um pré-morto abandonado? Agir tão dramaticamente em uma situação que já é a mais trágica possível para mim é, no mínimo, um pessimismo exagerado.
Quando meu médico veio ao meu quarto para dar-me as expectativas de tempo que ainda me restava, eu comia o melhor de todos os almoços; saboreava a comida com um prazer incomparável. Não prestei muita atenção no que ele falou. E, assim que foi embora, terminei meu almoço e comecei a lembrar de um amigo muito engraçado que eu tinha quando era adolescente.
                                                                                    

Um comentário:

  1. Transgressivo, viajante e envolvente;ser fã da tua escrita não exige esforço algum.

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